domingo, 31 de janeiro de 2010

Agora o papo tá ficando sério II

"Para falar de cinema, é preciso primeiro concordar sobre o que ele é.
E sobre o que ele é no Brasil. O cinema é uma arte, antes de tudo. O
bem que ele fez à Humanidade em seus 100 anos de existência é
inegável. Por outro lado, nos países ricos, particularmente Estados
Unidos, Índia e Japão, o cinema é uma indústria. Não aqui, conforme
prova a reportagem de primeira página do Segundo Caderno do dia 17 de
janeiro .

Segundo esse artigo, o produtor não fica com mais de 5% do total da
bilheteria, e, por isso, nenhum filme brasileiro (com raríssimas
exceções) dá lucro ao produtor. Claro que alguns filmes, baseados em
fórmulas comprovadas anteriormente, fazem o seu lucro. Mas são
exceções que em geral não contribuem muito para a cultura do país e
seu renome no mundo. É evidente que há alguma coisa errada. Na base.
Temos uma lei até generosa (de renúncia fiscal). Se funcionasse.

Será realmente o cinema brasileiro uma indústria? Parece uma ofensa
fazer essa pergunta. Pessoalmente, respondo que não. Não temos para o
cinema uma vocação especial como temos para a música. E não temos
dinheiro, o país é pobre. O filme estrangeiro domina o mercado, e não
temos chance de competir, resumindo a melodia. Porém, não queria
discutir esse assunto. Quem quiser continuar a bater nessa tecla que
continue. É assunto para homens de negócios, e não para artistas.
Repito: que continue tudo como está. Embora errado.

" Sei que isso faz rir aqueles que, atrás de mesas, pensam que a
arte é supérflua e elitista. Não é. A arte é aquilo que lembra os
homens dos seus melhores valores "

Já fiz alguns filmes, não sei se o leitor os admira. Isso não importa.
É certo que me coloco no melhor nível do cinema brasileiro. E cada
vez, na medida em que tenho espaço, é mais difícil para mim fazer um
filme. Convenhamos: há alguma coisa errada. Na verdade, creio que está
tudo errado. Para que o cinema exista como atividade, todos concordam,
é preciso ganhar o mercado externo. E as TVs. Digo que estamos
caminhando na estrada errada. Não é necessário que um país pobre como
o nosso gaste tanto dinheiro em entretenimento. Não é necessário fazer
filmes no Brasil. É necessário fazer bons filmes no Brasil, este é o
ponto aonde eu queria chegar. O cinema brasileiro, representado por
alguns dos nossos competentes legisladores e ambiciosos produtores,
deve continuar seu caminho inglório de comprovados maus resultados.
Porém é urgente e imprescindível abrir a primeira página do Segundo
Caderno para defender uma outra viela. Esta, sim, promissora, cheia de
vida e esperança. Refiro-me ao filme de arte. Material básico não nos
falta. Ser brasileiro é ser artista. O filme de arte não é
necessariamente impopular. Basta lembrar Charles Chaplin, Scorsese e
muitos outros. Ele apenas nega o princípio de que o povo só ri de
piadas que já conhece. Isto é menosprezar o público. O cinema
brasileiro que quiser alcançar o povo brasileiro não terá que
perguntar o que ele quer, porque povo pobre não sabe o que quer. Terá
que dar-lhe o que ele precisa. De modo que aqui venho de novo defender
a criação urgente do Ministério da Arte.

Sei que isso faz rir aqueles que, atrás de mesas, pensam que a arte é
supérflua e elitista. Não é. A arte é aquilo que lembra os homens dos
seus melhores valores. A honra, o amor, a dignidade etc. A arte é que
ensina o homem a lutar contra a corrupção, contra a discriminação,
contra a desigualdade social. E ela é boa nisso. Temos de fazer filmes
populares de arte. Ou até impopulares, porém de arte. Vejo o sorriso
zombeteiro do burocrata que só pensa nele e nas leis. "Mas como vamos
saber o que é um filme de arte? A coisa é muito subjetiva, etc." Que
comissão julgaria esses filmes de arte? A pergunta é absolutamente
inadequada. Mais que isso, é uma falácia imoral. Pensamentos
aparentemente corretos destroem tudo, como "violência atrai
violência", "os fins justificam os meios" e outros lemas do demônio. A
verdade é que qualquer criança, qualquer homem de bem, qualquer pessoa
séria, sabe imediatamente distinguir o que é arte e o que não é, o que
é o Bem e o Mal, o que é a Ordem ou Caos, o que é motivo de viver ou
morrer, o que faz crescer ou diminuir. Estaríamos perdidos se isso não
acontecesse.

Claro que as comissões que decidem rotineiramente desde que filmes
devem ser patrocinados até o orçamento nacional agem desprezando a
meritocracia e buscando a vantagem política ou financeira. Vivemos
tempos muito áridos, mas isso não precisa continuar assim por toda a
vida. O Ministério da Arte descobriria, através de uma comissão
competente e uma investigação ampla, quais os reais talentos do país,
quais são os roteiros mais próximos da perfeição e, mais importante
que isso, incentivaria a iniciativa pública, a iniciativa privada, a
fazer filmes com dinheiro do próprio bolso. Filmes baratos que, tendo
qualidade, seriam fartamente recompensados. Não quero perder tempo na
explicitação de como seria regulamentada uma política desse tipo,
porém quero afirmar que isso é facílimo. Que é barato também,
comparado com os milhões de gastos da Lei Rouanet cujo resultado pífio
os números demonstram. Nem tudo o que é antigo é falso. Antigamente
havia o Ministério da Educação e Cultura. Realmente, Cultura tem muito
mais a ver com a educação do que com a arte, com o passado do que com
o futuro.

" Quanto tempo mais é preciso continuar a dar um murro na ponta da
faca? Não deu certo o modelo brasileiro de cinema. É preciso arranjar
outro, colocar a imaginação no poder, pedir o impossível "

Assuntos importantes, como a preservação do patrimônio nacional, ou
das bibliotecas, ou da criação da ambicionada mas talvez utópica
indústria cinematográfica brasileira, devem continuar a ser
ardentemente considerados, porém a meta maior foi e sempre será a
arte. Foi daí que veio tudo e para lá deve voltar. Ninguém concordará
com esse manifesto que propõe um novo jogo, mais inteligente. Apesar
da imensa simpatia que nutro pela figura vital e máscula do nosso
atual ministro, ele luta em uma linha que a prática demonstrou ser
fracassada, já que nenhum filme brasileiro realmente se paga. Julgar
pelo resultado é um argumento forte, não pode ser varrido para debaixo
do tapete. Quanto tempo mais é preciso continuar a dar um murro na
ponta da faca? Não deu certo o modelo brasileiro de cinema. É preciso
arranjar outro, colocar a imaginação no poder, pedir o impossível - já
que somos homens razoáveis. Sei que essa colocação escorrerá pela
parede da burocracia, como se tivesse jogado um ovo ali. Não me
importa. Estou certo. Portanto, um dia, provavelmente depois da minha
morte, vencerei."

DOMINGOS OLIVEIRA é dramaturgo e cineasta

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