sábado, 5 de dezembro de 2009

Amir Haddad em Carta Aberta a Secretária de Cultura do Rio de Janeiro

Senhora Secretária


Gostaria de deixar aqui escrito uma tentativa de descrever os
sentimentos que me ocorreram, e pensamentos que tive quando entrei
em contato com o texto do Decreto.(?!?)

Talvez tenha de me demorar um pouco sobre este assunto, pois ele é
de capital importância para o momento e para o mundo em que estamos
vivendo e acredito que ninguém, muito menos eu e a Senhora Secretária,
podemos ou devemos fugir dele. Espero não ser interrompido como fui
no nosso breve encontro anterior,

Assim vamos lá.

Eu tinha ido para esta reunião com o artigo 5° da Constituição em
minha mão, para declamá-lo diante de todos, pois para mim era esta a
verdadeira razão daquele encontro. Liberdade de expressão.

Art. 5°, IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

Art. 5°, IX - é livre a expressão da atividade intelectual,
artística, científica e de comunicação, independentemente de censura
ou licença;

Art. 5°, XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardo
do sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

Art. 220 - A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a.
informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão
qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

Porem, ao ler o Decreto fui agradavelmente surpreendido e
desarmado por ver seu artigo 1°, que citava justamente este artigo da
Constituição. Respirei aliviado. Estamos no mesmo barco, pensei
eu.

Mas nos artigos, incisos ou alíneas ou parágrafos

seguintes, ou não sei bem o que é, o que estava escrito era uma
seqüência de requisitos que eu deveria cumprir para que pudesse
usufruir desta liberdade constitucional. Condições sem as quais eu
não poderia exercer meu direito de cidadão livre.

Então eu estava livre, mas não estava muito. Eu era uma pessoa que
estava presa e agora ia ser agraciado com a benesse da liberdade
condicional. Estava ali me sendo oferecida a liberdade, sob
determinadas condições que eu deveria cumprir e respeitar, sob pena
de novamente voltar a prisão. O meu mal-estar cresceu quando
compreendi que a discussão teria que ser mais profunda e
inquietante do que eu imaginava. Não estava diante de pessoas que
estavam pensando o mundo como eu. Embora a Senhora Secretária tivesse
afirmado que, por ser comunista sabia já das coisa que eu estava
começando a dizer, na prática esta teoria não se confirmava. Íamos ter
que discutir mais do que pensávamos, e não havia tempo para isto.
Havia mais coisas em jogo ali do que simplesmente nossas boas
intenções, em relação ao bem-estar da cidade e de seus cidadãos. E de
que maneira a boa gestão de políticas - públicas para a Cultura
poderia contribuir para isto. A cidade não estava em jogo, nem o seu
cidadão, e sim a necessidade de aprovar urgentemente, não sei porque
motivo, aquele documento regulatório e contraditório das atividades
em áreas públicas, que estava diante de mim. E eu, senhora
Secretaria, sem voz e imobilizado, nada podia fazer, a não ser pedir
um tempo para pensar e propor alguma reflexão e discussão, a respeito
desta questão tão importante, já que, aparentemente, não estávamos
ocupando posições semelhantes diante do problema.

E assim, a discussão com os interessados que deveria ter sido
feita, antes até mesmo da elaboração do Decreto, e que iria ajudar
nesta elaboração, teria que ser feita ali naquela hora, sob pressão
política e de prazo. Companheiros da Rede de Teatro de Rua do Rio de
Janeiro tinham várias vezes antes tentado contato, sem êxito, com esta
Secretaria.

Nós não achávamos que uma questão tão importante podia ser
discutida às pressas; e continuamos achando que não, dadas a sua
importância e atualidade. É realmente uma questão de tempo, Senhora
Secretária. E não podemos ser levianos e inconseqüentes a este
respeito, pois o que for decidido aqui no Rio de Janeiro vai
repercutir no Brasil inteiro, e nós estamos no momento de avançar em
nossas conquistas de liberdade. Sempre que os governos não conseguem
equacionar seus problemas sociais a liberdade é a primeira a ser
sacrificada. Podemos estar “distraídos” diante disto tudo? O muro
de Berlim resolveu o problema da liberdade? O dia da Consciência
Negra resolveu o problema do apartheid social e racial da sociedade
brasileira? É possível distrair, descansar?



Senhora Secretária, esta Secretaria acho que ainda tem um
departamento de Patrimônio que foi criado na gestão do Antonio Pedro
Borges, a frente da primeira Secretaria de Cultura, do Rio de
Janeiro. Pois bem, Senhora, todos nós sabemos que Santa Teresa é
uma APA- Área de Proteção Ambiental; e que todos nós, gestores
públicos e cidadãos, devemos zelar pela sua integridade e identidade.
A Senhora já viu o caos em que estão se transformando as ruas e
ladeiras de Santa Teresa? A qualidade de vida do bairro é cada vez
pior, o morador se ressente, enquanto floresce um comercio, que só
remotamente beneficia o bairro e seu morador. Os carros, veículos de
todos os tamanhos e pesos, sobem e descem suas ruas e ladeiras
indiscriminadamente, em qualquer direção, sem nenhum regulatório. Lá
não precisa? Uma vez só estiveram lá, que eu saiba, para obrigar o
proprietário de um bar-mercearia a recolher duas mesas da calçada,
onde eu e outros moradores há 30 anos costumamos nos sentar para
conversar, sermos amigos, cidadão, convivermos. Coisa rara em
qualquer lugar do Rio de Janeiro.
O choque de ordem fez recolher cadeiras e mesas onde a vida

comunitária se estabelece, e onde pode nascer um remédio para a
violência que nos deixa desolados, numa cidade tão linda como a
nossa. E deixa a tragédia anunciada se aproximar cada vez mais!

O que está acontecendo ou querendo acontecer com o Teatro de Rua não
é parecido com o que aconteceu com as cadeiras e mesas de Santa
Teresa?

A senhora não acha, Senhora Secretária, que tudo isto tem a ver com a
Cultura? Que a Cultura tem a ver com identidade e qualidade de
vida? Que qualquer política “regulatória” teria que ser submetida à
apreciação da Secretaria de Cultura e a Secretaria de Saúde? Para
evitar atitude e procedimentos que em vez de resolver, transformam a
cidade e a vida do cidadão em tristeza, depressão e mais violência?
Não é esta a função da Vida Cultural na construção da nossa identidade
e cidadania? Não só na teoria, mas também na prática?

Senhora Secretária, pela regra do Decreto, meu grupo de Teatro, o Tá
na Rua, não poderá ir nunca à rua, pois não se encaixa em nada do
que o decreto pensa. Quem o redigiu tem pouca familiaridade com a
questão, embora possa ter tido empenho e boa – vontade.

Assim como eu, outros artista de rua não preparam com antecedência
suas saídas, e muitas vezes saímos a rua sem saber onde iremos parar.
Nem dia, nem hora, nem local. E nunca obstruímos nenhuma praça,
nenhuma rua, nunca prejudicamos nenhum comerciante, nem nunca
perturbamos o sono de ninguém ou o trânsito.

O básico de nosso trabalho é o respeito à população e ao seu direito
de ser feliz, participando da vida cultural da cidade. Nunca iríamos
fazer ou fizemos coisas que ferissem a ordem pública, a verdadeira
ordem pública, não a ordem de uma gaveta vazia. Atitude que não
parece ser a que subjaz nestas medidas regulatórias abstratas, em
nome de uma ordem também abstrata. Sanear, higienizar não é organizar.
Nós precisamos de apoio, estimulo, e incentivo, não de organização
aleatória e indiscriminada.
Nunca desistimos de nossa cidadania, pois amamos a cidade e seus cidadãos,

sem distinção de classe, cor, credo, idade ou religião. O nosso maior
prazer é respeitar o cidadão. Nós queremos ser parceiros do poder
público na construção de uma sociedade melhor. Não devemos ser
tratados como presos em liberdade condicional. Nossa liberdade foi
conquistada ao longo de séculos e de lutas e nossa liberdade não pode
ser concedida. Ela tem de ser reconhecida. Não posso me imaginar
em praça pública somente se estiver autorizado pela autoridade. Eu
abandonei tudo por amor à cidade. Sou cidadão carioca emérito. Não
me tirem agora a cidade. Senhora secretária, não deixe isto acontecer.
O momento é histórico e importante. O que fizermos agora vai, como já
disse, repercutir em todo País. Se decidirmos bem, ficaremos todos,
nacionalmente um pouco mais alegres. Se perdermos a oportunidade
estaremos fazendo como aqueles que querem a todo custo tirar a
esperança do Brasil. Agora que estamos crescendo, produzindo
auto-estima que poderá iluminar o aparecimento da nação
brasileira. Podemos fazer historia Senhora Secretária, ou sermos
atropelados por

ela.
Creia-me um seu admirador e antigo eleitor.

Obrigado pela atenção.
Rio de Janeiro, 18 de Novembro

de 2009

Amir Haddad

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